29 setembro 2015

A Família I - Introdução


A  F A M Í L I A

[INTRODUÇÃO]


DEPOIS da morte do meu pai, aos 9 anos, fui viver com a família da minha mãe, numa grande casa cheia de gente com primos, tios, tias, tias-avós, criadas e mais gente que nada teria a haver comigo não fosse o espírito comum que se ia criando e vivendo. As cores e as dimensões da casa eram tão desmesuradas quanto alguém que já viveu sem se preocupar muito com as fronteiras entre o espírito e a realidade. À medida que ia crescendo fui acompanhando a morte dos mais velhos, um por um, até ao último. 

O primeiro contacto que tive com a família Corrêa da Silva, foi através da minha avó materna, nascida no dia em que Camilo se matou (1/6/1890) e que me falava de pessoas um século mais velhas com a mesma naturalidade com que dizia que se lembrava estar no Rossio, ou em Le Toulon, na bicha, para andar de balão. 


O problema da implantação da República era tão grande e ainda tão clandestino como qualquer outro que lhe preenchia o dia. Para ela, os Corrêa da Silva eram uma família sólida pelas convicções, pelo dinheiro, pela despretensão daquilo que queriam em todas as direcções. Ouvi um dia, que a diferença básica entre nobreza e burguesia, residia no facto de que, em relação à primeira, o conceito de pessoa está ligado à noção de elo, entre pais e filhos, entre avós e netos; os valores e os bens não pertencem a uma pessoa, mas a uma estirpe ou a uma moral. Ninguém é senhor de nada, apenas transmissor, ao longo do tempo! 

A burguesia, por seu lado, dá um maior valor à pessoa — o que foi profundamente acentuado com a Revolução Francesa, já se sabe — não só por aquilo que vale mas também por aquilo que tem, ele próprio. Interiormente, há uma maior responsabilidade pelo destino pessoal de cada um. Apesar desta distinção ter saído dum sangue — e de um espírito —, genuinamente nobre, considero-o, naturalmente, justo e acertivo. No séc. XVIII a mesma opinião revela-se bem mais radical! Se não, vejamos: “Eles, eles têm medo da morte. Eles não sabem donde vêm, eles não sabem para onde vão. Vivem só este instante. A sua existência fica limitada na sua pequena carcaça individual. Nós outros, nunca nascemos e nunca morremos. Eu sei que estive em Azincourt e nas Cruzadas e que pelo meu filho e suas crianças conhecerei muitos outros combates e outras glórias.” Assim se exprimia a velha Duquesa de Busset a poucas horas da guilhotina 2. Claro que há excepções ou desvios a esta grandeza de opiniões, apraz-me acrescentar. Inúmeras vezes este género de conceitos acabam por se diluir, por se sobre- porem entre eles. A atestá-lo, a Marquesa de Lambert: “Chamo povo a quem pensa comum e baixo: a Corte está cheia! ” 3. Ou então: “Para o verdadeiro aristocrata todos os homens são iguais!4. Esta frase já é de Walt Disney, curiosamente. 

Vamos ver já adiante, na breve passagem de um longo testamento, a relação entre um Comendador brasileiro, digno representante da burguesia do seu tempo e os seus escravos, que apesar de não passarem de um bem patrimonial, eram reconhecidos como pessoas, como almas de Deus. 

O conceito de Burguesia, duma maneira geral, serviu, nos séculos XVII e XVIII e mesmo nos princípios do XIX, para distinguir os patrões dos operários. Mais tarde, ou ao mesmo tempo, para se opôr não só ao conceito de operário como também ao de aristocrata. Um dicionário de 45, de Cândido de Figueiredo, sobre o qual Júlio Dantas diz: “O melhor da língua portuguesa: O mais opulento, O mais vivo e, tecnicamente O mais perfeito.” 5, refere “Burguesia, f. Qualidade de burguês. A classe média da sociedade.” 6. Cabe a cada um pensar e avaliar esta definição, hoje em dia. Nos Estados Unidos, que servem de modelo ao mundo em que todos vivemos, é um termo que não faz sentido. 

Em relação ao século XIX, a sensação com que fiquei é que quem era burguês não se sentia nada médio! Talvez por tê-lo visto através da família estudada aqui! E é Uma Família do Porto, sem características especiais das outras, ou com todas as características especiais que a tornam diferente das outras. Não posso deixar de referir e também a propósito desta família, que se corrermos os olhos por livros e enciclopédias, aparece regularmente ligado a burguês palavras como «... fraternidade...», «... comunidade de interesses...», «... cidadania...», palavras que fazem lembrar maçonaria. Os meus muito ténues conhecimentos de História fazem-me saber que são conceitos que andam de mãos dadas. Por outro lado, a visão que tenho da família como instituição, confronta-me imediatamente com o problema das instituições, ou seja, é constituída por homens e mulheres! Uns bons, outros maus, com altos e baixos, ao longo dos tempos, assim se faz a História! Assim se descreve uma família! 

Melhor: O historial de cada pessoa, já se sabe, é constituído também pela família, que a situa, a coloca, num lugar no mundo, que lhe dá a percepção das coisas! Os referidos neste trabalho, pessoas de hoje, ficam com referências, espero, de onde vêm, do que sentem, do que são! É impressionante a vocação burguesa do Porto. Mas temente a Deus! Se olharmos, da ribeira de Gaia, o volume que a cidade ocupa, os pontos mais altos correspondem á Sé e ao Paço, à Torre dos Clérigos, dedicada a Nossa Senhora da Ascenção e ao convento de São Bento da Vitória. 

Ou então, se entrarmos nas tasquinhas ou nas lojas do Porto antigo, não deixamos de ver um azulejo com Nossa Senhora, ou um Santo com flores e com uma luzinha, geralmente eléc-trica. E o futebol? O bairrismo pelo F.C.P. mostra bem a força duma nação. Nunca fui às Antas, mas estive, num domingo gélido, à saída dum jogo e num enorme espaço que existia à frente do estádio, depois do povo “... multidão, besta estúpida...” 7, se me é permitido aqui citar a ilustre genealogista Dona Maria Adelaide Pereira de Morais, ter por lá passado à saída! Nesse domingo gélido, dizia eu, num espaço enorme e vazio, sentia-se um calor abafante. As casas do século passado, as que sobreviveram à violência do sec. XX, têm um ambiente colorido e rebuscado, as madeiras são sólidas e boas. 

A profusão de cores, nos veios da madeira das portas, janelas e rodapés — quando as madeiras não eram tão boas, eram pintadas, e também isso foi moda —, a madeira, dizia eu, com as cores das paredes garridas, a imitar mármore, ou ainda forradas a cetim, no verão e com colchas e tapetes no inverno! Os vidros têm o toque de gerações e gerações de pessoas que olharam através. As maçanetas das portas tinham madrepérola e o ferro fundido das varandas, das grades e dos corrimãos, impõem um estado de espírito grande, sem medo de pensar! 

O mesmo estado de espírito que desfez um sistema teocêntrico que existia desde a Idade Média. Esta imposição foi progressiva e podemos ver que transparece, ao longo da História, sob diversas for- mas. Ligado a elas há um episódio curioso que me apetece contar: Quando D. João VI deu à nação a Constituição de 1822, o povo, “... multidão, besta estúpida...” 8, se me é permitido voltar a citar a ilustre genealogista Dona Maria Adelaide Pereira de Morais, pensou que o rei tivesse sido obrigado a isso e correu ao palácio gritando: “Viva El-rei D. João VI, viva El-rei absoluto!”. E as infantas à janela respondiam, gritando também: “O Pai não quer ser absoluto!”. Uma cena de gritos, enfim! 

Voltando ao Porto! As famílias do Porto, com ligações ao Brasil no seu passado, têm características diferentes das outras. Acabam todas por ter alguma coisa a ver com aquelas terras, eu sei, mas umas mais que outras! É como se no seu espírito comum entrasse um bocadi- nho de calor. Clotilde Mesquitela classificou uma vez os brasileiros como “... barulhentos, em todas as camadas sociais.” 9. É como se no seu espírito comum entrasse um bocadinho de barulho. A família estudada neste livro tem fortes laços! Verificamos que o dinheiro tinha vindo do Brasil, mas como era muito e a ligação com Deus era grande, nada obstava a que estivesse perto de todos os sangues fortes instituídos.


N O T A S


in ap. Engº Luís Pizarro de Castro.
idem.
in Jovens Ladrões de Cavalos.
in Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de
   Figueiredo, p. 2.
in Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa de Cândido de
   Figueiredo, p. 245.
in Velhas Casas - Casa de Sezim - 1985, p. 86.
in Velhas Casas - Casa de Sezim - 1985, p. 86.
in Carta ao autor de 02/08/1997.