A F A M Í L I A
[INTRODUÇÃO]
[INTRODUÇÃO]
DEPOIS da morte do meu pai, aos 9 anos, fui viver com
a família da minha mãe, numa grande casa cheia de gente com primos, tios, tias,
tias-avós, criadas e mais gente que nada teria a haver comigo não fosse o
espírito comum que se ia criando e vivendo. As cores e as dimensões da casa
eram tão desmesuradas quanto alguém que já viveu sem se preocupar muito com as
fronteiras entre o espírito e a realidade. À medida que ia crescendo fui
acompanhando a morte dos mais velhos, um por um, até ao último.
O primeiro contacto que tive com a família Corrêa da Silva, foi através da minha avó materna, nascida no dia em que Camilo se matou (1/6/1890) e que me falava de pessoas um século mais velhas com a mesma naturalidade com que dizia que se lembrava estar no Rossio, ou em Le Toulon, na bicha, para andar de balão.
O problema da implantação da República era tão grande e ainda tão clandestino como qualquer outro que lhe preenchia o dia. Para ela, os Corrêa da Silva eram uma família sólida pelas convicções, pelo dinheiro, pela despretensão daquilo que queriam em todas as direcções. Ouvi um dia, que a diferença básica entre nobreza e burguesia, residia no facto de que, em relação à primeira, o conceito de pessoa está ligado à noção de elo, entre pais e filhos, entre avós e netos; os valores e os bens não pertencem a uma pessoa, mas a uma estirpe ou a uma moral. Ninguém é senhor de nada, apenas transmissor, ao longo do tempo!
O primeiro contacto que tive com a família Corrêa da Silva, foi através da minha avó materna, nascida no dia em que Camilo se matou (1/6/1890) e que me falava de pessoas um século mais velhas com a mesma naturalidade com que dizia que se lembrava estar no Rossio, ou em Le Toulon, na bicha, para andar de balão.
O problema da implantação da República era tão grande e ainda tão clandestino como qualquer outro que lhe preenchia o dia. Para ela, os Corrêa da Silva eram uma família sólida pelas convicções, pelo dinheiro, pela despretensão daquilo que queriam em todas as direcções. Ouvi um dia, que a diferença básica entre nobreza e burguesia, residia no facto de que, em relação à primeira, o conceito de pessoa está ligado à noção de elo, entre pais e filhos, entre avós e netos; os valores e os bens não pertencem a uma pessoa, mas a uma estirpe ou a uma moral. Ninguém é senhor de nada, apenas transmissor, ao longo do tempo!
A
burguesia, por seu lado, dá um maior valor à pessoa — o que foi profundamente
acentuado com a Revolução Francesa, já se sabe — não só por aquilo que vale mas
também por aquilo que tem, ele próprio. Interiormente, há uma maior responsabilidade
pelo destino pessoal de cada um. Apesar desta distinção ter saído dum sangue —
e de um espírito —, genuinamente nobre, considero-o, naturalmente, justo e acertivo. No séc. XVIII a
mesma opinião revela-se bem mais radical! Se não, vejamos: “Eles, eles têm medo
da morte. Eles não sabem donde vêm, eles não sabem para onde vão. Vivem só este
instante. A sua existência fica limitada na sua pequena carcaça individual. Nós
outros, nunca nascemos e nunca morremos. Eu sei que estive em Azincourt e nas
Cruzadas e que pelo meu filho e suas crianças conhecerei muitos outros combates
e outras glórias.” Assim se exprimia a velha Duquesa de Busset a poucas horas
da guilhotina 2. Claro que há excepções ou desvios a esta grandeza de
opiniões, apraz-me acrescentar. Inúmeras vezes este género de conceitos acabam
por se diluir, por se sobre- porem entre eles. A atestá-lo, a Marquesa de
Lambert: “Chamo povo a quem pensa comum e baixo: a Corte está cheia! ” 3. Ou
então: “Para o verdadeiro aristocrata todos os homens são iguais!” 4. Esta
frase já é de Walt Disney, curiosamente.
Vamos ver já adiante, na breve
passagem de um longo testamento, a relação entre um Comendador brasileiro,
digno representante da burguesia do seu tempo e os seus escravos, que apesar de
não passarem de um bem patrimonial, eram reconhecidos como pessoas, como almas
de Deus.
O conceito de Burguesia, duma maneira geral, serviu, nos séculos XVII
e XVIII e mesmo nos princípios do XIX, para distinguir os patrões dos
operários. Mais tarde, ou ao mesmo tempo, para se opôr não só ao conceito de
operário como também ao de aristocrata. Um dicionário de 45, de Cândido de
Figueiredo, sobre o qual Júlio Dantas diz: “O melhor da língua portuguesa: O
mais opulento, O mais vivo e, tecnicamente O mais perfeito.” 5, refere
“Burguesia, f. Qualidade de burguês. A classe média da sociedade.” 6. Cabe a
cada um pensar e avaliar esta definição, hoje em dia. Nos Estados Unidos, que
servem de modelo ao mundo em que todos vivemos, é um termo que não faz sentido.
Em relação ao século XIX, a sensação com que fiquei é que quem era burguês não
se sentia nada médio! Talvez por tê-lo visto através da família estudada aqui!
E é Uma Família do Porto, sem
características especiais das outras, ou com todas as características especiais
que a tornam diferente das outras. Não posso deixar de referir e também a
propósito desta família, que se corrermos os olhos por livros e enciclopédias,
aparece regularmente ligado a burguês palavras como «... fraternidade...», «...
comunidade de interesses...», «... cidadania...», palavras que fazem lembrar
maçonaria. Os meus muito ténues conhecimentos de História fazem-me saber que
são conceitos que andam de mãos dadas. Por outro lado, a visão que tenho da
família como instituição, confronta-me imediatamente com o problema das
instituições, ou seja, é constituída por homens e mulheres! Uns bons, outros
maus, com altos e baixos, ao longo dos tempos, assim se faz a História! Assim
se descreve uma família!
Melhor: O historial de cada pessoa, já se sabe, é
constituído também pela família, que a situa, a coloca, num lugar no mundo, que
lhe dá a percepção das coisas! Os referidos neste trabalho, pessoas de hoje,
ficam com referências, espero, de onde vêm, do que sentem, do que são! É
impressionante a vocação burguesa do Porto. Mas temente a Deus! Se olharmos, da
ribeira de Gaia, o volume que a cidade ocupa, os pontos mais altos correspondem
á Sé e ao Paço, à Torre dos Clérigos, dedicada a Nossa Senhora da Ascenção e ao
convento de São Bento da Vitória.
Ou então, se entrarmos nas tasquinhas ou nas
lojas do Porto antigo, não deixamos de ver um azulejo com Nossa Senhora, ou um
Santo com flores e com uma luzinha, geralmente eléc-trica. E o futebol? O
bairrismo pelo F.C.P. mostra bem a força duma nação. Nunca fui às Antas, mas
estive, num domingo gélido, à saída dum jogo e num enorme espaço que existia à
frente do estádio, depois do povo “... multidão, besta estúpida...” 7, se me é
permitido aqui citar a ilustre genealogista Dona Maria Adelaide Pereira de
Morais, ter por lá passado à saída! Nesse domingo gélido, dizia eu, num espaço
enorme e vazio, sentia-se um calor abafante. As casas do século passado, as que
sobreviveram à violência do sec. XX, têm um ambiente colorido e rebuscado, as
madeiras são sólidas e boas.
A profusão de cores, nos veios da madeira das
portas, janelas e rodapés — quando as madeiras não eram tão boas, eram
pintadas, e também isso foi moda —, a madeira, dizia eu, com as cores das
paredes garridas, a imitar mármore, ou ainda forradas a cetim, no verão e com
colchas e tapetes no inverno! Os vidros têm o toque de gerações e gerações de
pessoas que olharam através. As maçanetas das portas tinham madrepérola e o
ferro fundido das varandas, das grades e dos corrimãos, impõem um estado de
espírito grande, sem medo de pensar!
O mesmo estado de espírito que desfez um
sistema teocêntrico que existia desde a Idade Média. Esta imposição foi
progressiva e podemos ver que transparece, ao longo da História, sob diversas
for- mas. Ligado a elas há um episódio curioso que me apetece contar: Quando D.
João VI deu à nação a Constituição de 1822, o povo, “... multidão, besta estúpida...”
8, se me é permitido voltar a citar a ilustre genealogista
Dona Maria Adelaide Pereira de Morais, pensou que o rei tivesse sido obrigado a
isso e correu ao palácio gritando: “Viva El-rei D. João VI, viva El-rei
absoluto!”. E as infantas à janela respondiam, gritando também: “O Pai não quer
ser absoluto!”. Uma cena de gritos, enfim!
Voltando ao Porto! As famílias do
Porto, com ligações ao Brasil no seu passado, têm características diferentes
das outras. Acabam todas por ter alguma coisa a ver com aquelas terras, eu sei,
mas umas mais que outras! É como se no seu espírito comum entrasse um bocadi-
nho de calor. Clotilde Mesquitela classificou uma vez os brasileiros como “...
barulhentos, em todas as camadas sociais.” 9. É como se no seu espírito
comum entrasse um bocadinho de barulho. A família estudada neste livro tem
fortes laços! Verificamos que o dinheiro tinha vindo do Brasil, mas como era
muito e a ligação com Deus era grande, nada obstava a que estivesse perto de
todos os sangues fortes instituídos.
N O T A S
2 in ap. Engº Luís Pizarro de Castro.
3 idem.
4 in Jovens Ladrões de Cavalos.
5 in Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa de
Cândido de
Figueiredo, p. 2.
6 in Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa de
Cândido de
Figueiredo, p. 245.
7 in Velhas Casas - Casa de Sezim - 1985, p. 86.
8 in Velhas Casas - Casa de Sezim - 1985, p. 86.
9 in Carta ao autor de 02/08/1997.
9 in Carta ao autor de 02/08/1997.