08 outubro 2015

A la cour d'un empereur chinois fou





“ ENSEMBLE ILS TRAVERSAIENT LA LAPONIE
EN ROLLS BLANCHE ET PARLAIENT DE LEUR
PREMIÈRE RENCONTRE, CINQ SIÈCLES PLUS TÔT,
A LA COUR D’ UN EMPEREUR CHINOIS FOU.” 27

A tia Irene morreu velhinha, num lar de terceira-idade, onde eu, muito míudo, ia visitá-la! Apanhava dezenas de autocarros para estar sentado ao lado dela, calado e de olhos muito abertos, a ouvir histórias que me deram as linhas-mestras deste trabalho. Tinha uma bengala de castão de prata oferecida pelo Sá Carneiro, que, quando ainda jovem, tinha sido advogado de uma questão qualquer familiar. Morreu como nasceu, sozinha! Ocorreu-me uma longa lista de tias velhinhas que conheci, das amigas das minhas tias velhinhas, algumas tão velhinhas que às vezes eu desconfiava que alguma devia constar no Velho Testamento. Junto à sensação de ternura e saudade que tenho ao lembrar- me delas todas, lembro-me também do filme Os Canhões de Navarone ! Por exemplo, as Van Zelleres, que me faziam rir, eram várias irmãs solteiras que viviam juntas, longe da grandeza que conheceram e que mereciam: uma cozinhava, outra limpava, outra guiava e a mais velha tratava das flores. Viviam com um irmão, também solteiro, que encontrava os seus momentos de sossego em tardes de leitura e de jogo no Clube e que elas nunca entenderam porque não se tinha casado! Afinal era bonito e caseiro. Eu se tivesse quatro irmãs a tratarem bem de mim, também não me casava. Se alguma delas dizia um disparate, curvada, com os olhos no tapete, sinceramente séria, ouvia logo ao lado duma irmã: “Ó Maria, francamente, nem pareces fidalga!”. As Araújos, que me davam desenhos a dizer que não podia mexer nos remédios ou brincar com fósforos e já eu fumava às escondidas; a tia Maria Joaquina, que tinha um penteado que fazia lembrar o avião do Gago Coutinho; a tia Mariazinha, feia mas muito romântica e femenina. As Senhoras da Conferência; as tias snobes de Vila do Conde; a minha avó que morreu já bem depois dos 100, todas elas satisfeitas com a vida e resignadas com a morte.

A minha querida avó, que sempre conheci adoravelmente velha, tinha o sentido prático que a dificuldade de criar vários filhos e imensos netos dá! Tinha uma jóia grande, antiga e famosa a que chamava ovo estrelado! E tinha sempre alguma coisa verdadeiramente espantosa a dizer sempre que acontecia o que quer que fosse, na minha vida: Quando tirei a Carta disse-me que tinha conhecido muito bem o homem que tinha trazido o primeiro carro para o Porto e que o pai tinha comprado um Chevrolet novo em Paris, completam e n t e calhambeque. Quando uma amiga me deu um setter côr de fogo, disse-me que o primeiro setter a haver lá em casa, tinha sido dado pela Rainha D. Amélia ao seu pai, porque não se dava com a comida dos outros cães do Paço; quando tive uma namorada contou-me como tinha conhecido o meu avô, em 1918, quando ia de eléctrico, visitar o Paiva Couceiro! Após a implantação da República, no período de 1910 a 1918, o seu pai, tirano déspota, brutalmente monárquico e cristão, como todos os da sua geração, exilado em Espanha escrevia-lhe cartas em que assinava “Da tua sempre amiga Maria Helena.” Dizia então com um ar sério e o sobrolho carregado: “Eu via logo que era ele, pela letra!” E rematava, igualmente séria e com as sobrancelhas arqueadas: “Depois eu não conhecia nenhuma Maria Helena.” A mãe tinha morrido demasiado cedo e o pai juntou então os filhos pequenos e perguntou com qual das tias queriam eles que ele casasse! “Eu bem disse: a tia Gertrudes, mas os outros escolheram a tia Teresa, paciência!” A tia Teresa! A minha avó Teresa, que ainda me conheceu bébé, condecorada com a Ordem da Benemerência, foi o exemplo da víúva velhinha, respeitável, mãe dos pobres, muito da Igreja, rica! Vivia numa casa e num ambiente que perdurou até bem depois da sua morte. O cheiro a biscoitos de canela, as criadas muito velhas e muito gordas, o homem que tratava do jardim, as filhas solteiras e também já velhinhas. Uma raposa empalhada!? Foi o marido que a caçou com o Rei! Estava a pensar nisto hoje, uma madrugada de domingo, e ouvi na rádio a notícia da morte da Lady Di, tão nova e tão bonita. Instintivamente, pensei primeiro que para morrer basta estar vivo. Elementar! Lembrei-me depois de todas as pessoas atrás referidas, as vivas e as que já morreram, que fui conhecendo, dado que as referências foram sempre múltiplas e provenientes de vários lados, e ao pé de quem me vi perto, nos vivos de hoje e nos de outrora.

Lembrei-me ainda de um dia, em Singeverga, quando passeava com o Luís pela mata. Aqui e ali um coelho a espreitar, a correrem à nossa frente. A certa altura passamos por um corvo — nos Mosteiros Beneditinos costuma sempre haver um corvo. Este, particularmente, chama-se Vicente, por causa de S. Vicente e das armas de Lisboa. S. Bento tinha um! Um corvo dizia, que nos cumprimentou educadamente: “Olá, olá.” Mais uma vez instintivamente, pensei que era Deus a falar comigo. Depois ri-me a pensar que mais falta acontecer a uma alma a quem um corvo se dirige.

Lembrei-me, enfim, de um nascer do sol na Ericeira, perto do Cabo da Roca, o ponto mais ocidental do Continente europeu; um nascer do sol invernoso e infindável, junto a uma escarpa com dezenas de metros sobre o mar. A meio metro do precipício, num sítio isolado e sem nenhum murinho, havia um banco de jardim!

Estes três momentos, presente, no Porto, agora; Singeverga e Ericeira têm em comum o esplendor do nascer do dia, com o céu carregado de nuvens, onde lemos o que devemos fazer numa pintura que não é feita por homens; onde lemos as grandes opções do plano, diria; têm em comum o frio e por último têm em comum fazerem todos parte deste livro.

O Peninha, o Morcego Vermelho e a Maggie Simpson exigem que o fim deste livro seja em beleza, por isso vou falar de almas grandes! Maria Stuart, a eterna Rainha da Escócia, que Isabel I aprisionou anos e anos e que para caminhar para a guilhotina se vestiu toda de vermelho, com luvas e tudo, de modo a que a côr do seu sangue não sobressaísse! Ou Maria Antonieta, mulher de Luís XVI , que ao saber a sua sentença disse: “Vou-vos mostrar como morre uma Rainha!” E mostrou! Não me parece bom ser Rainha. Perde-se a cabeça com facilidade. Ou ainda qualquer um de nós que pelo menos uma vez já nos sentimos os maiores, já pensamos “É tudo meu!”, que já tivemos apaixonadamente o mundo na mão.  Vemos um expoente disso em Napoleão que depois de se fazer coroar pelo Papa, tirou-lhe a coroa das mãos e coroou-se a si próprio! Almas grandes cabem em todo o lado, são azuis acinzentadas, têm os tons de um amanhecer de inverno, com nevoeiro! Vêem? Em beleza!

Ah! Antes de acabar falta sugerir um itinerário para um passeio pelo Porto! Ponha umas sapatilhas e encontramo-nos na Praça da Liberdade. Uma rápida passagem pelas tasquinhas de S. Bento! Descemos Mouzinho da Silveira até à Ribeira. Esta rua é a minha preferida para comprar o que quer que seja. Tem lojas de estilistas futuristas com boa onda, outras vendem isqueiros Bic a 50 escudos, fitas métricas, velas, vassouras, joalheiros chiques, lojas de sementes, armazéns de mercearia. Uma fonte onde os miúdos da rua dão banho a um gato, no meio duma barulheira. Continuamos junto ao rio até à Cantareira! Da outra banda, Corpus Christi, Campo Belo. Na Cantareira apanhamos o barco A Flôr do Gás e vamos tomar um café à Afurada. O barco custa 65 escudos. Se pusermos os pés fora da borda temos a sensação que andamos sobre a água. As peixeiras com cabazes e um triângulo de gaivotas a partir-lhes da cabeça também fazem parte do cenário. Também já atravessei o rio pela ponte da Arrábida, não pelo tabuleiro, mas pelo arco. Proeza dum portuense! Tornamos de volta e continuamos até à Foz. Aí há sempre algum chato para cumprimentar. Apanha-se o eléctrico para a Boavista e, lá chegados, dizemos mal da nossa vida por estarmos tão longe do ponto de partida.

Negras são as noites do Porto povoadas por prostitutas, travestis, drogados e homens maus. Carros que passam, vozes ao longe, temos bem a noção que há um mundo paralelo, vários mundos paralelos, que nos tocam no passeio e não damos por eles. Aqui na baixa, onde moro, várias personagens que vagueiam pelas ruas à noite são minhas amigas, dão-me calendários do F. C. Porto, falam-me dos filhos, choram os pais, dormem em caixotes. Já não sentem que a vida é agressiva, nem sabem porque é que vivem, sequer! Aparecem e desaparecem deixando um rasto de morte atrás de si. Acabo por perceber que este universo também é meu! Inexplicavelmente dá-me adrenalina, faço parte dele! Aprendi a dizer: “Sou do Porto, não papo grupos!”; “Otário” e “Não te chores, faz-te à vida!”, “Tás certinho”. Aprendi que às vezes a liberdade é indesejada e se pode, pura e simplesmente, ficar incapacitado para gostar do que quer que seja. Também aprendi o valor de uma boa cabeçada. Lembrei-me duma manhã estar sentado num jardim de magnólias, S. Lázaro, com o sol forte e risonho. Um grande lago redondo com uma coroa de amores-perfeitos à roda e dezenas de crianças a correrem, de mãos dadas. Como ainda não sabem bem os nomes entre si, o que mais se ouve em gritos suaves é “Amigo…” Os passarinhos numa algazarra. É a hora deles conversarem! Velhos a jogar sueca! Lembro-me de estremecer quando via um Citroên levantar ou quando via um arco-íris no céu. Amava com ternura! Conheci a paixão, amei com loucura. Agora não sei o que aconteceu, amo serenamente.


Matosinhos é a minha terra! Terra de docas. Quando de lá saí a única coisa que trouxe foram saudades e a assinatura de O Comércio de Leixões, o jornal da terra, sempre com notícias das pessoas que lá vivem, do Orfeão, do Forum e esse género de coisas! As indignações pelas soluções do trânsito, dos prédios que crescem pelos cantos! Leça da Palmeira a seguir, terra da minha mãe, de praias, do Clube, do Bar do Fernando, de Cameiras. É a terra do Solar das Suecas, antiga casa dos Rocha Leite. O Farol, Nova Iorque que é o nome do efeito que à noite a refinaria da Galp tem, com milhares de lâmpadas. Quem conhece Nova Iorque, em Leça, ria-se lá desta explicação para tias! A estrada antiga para Vila do Conde, o mar. O Kartódromo, os cafés na praia, o pôr-do-sol, o mar outra vez e aquela sensação estranha que todas as terras mágicas dão. Mas Matosinhos e Leça porquê? Como estávamos lá agora? Eu explico: analiso a posição aerodinâmica do meu corpo na cadeira de baloiço com os pés na janela. Sinto o peso da noite no peito. Sinto-me protegido pela escuridão, pelas paredes da minha casa, pela música que não pára, por uma 7up. Sinto que se não existissem agora estas coisas, nesta posição que faz lembrar uma escova de dentes Philip Stark, eu mergulhava no vácuo breu para onde os meus pés apontam. 


Quando amanhã saírem de casa e olharem para o céu, o que vão ver não é um pássaro ou um avião, nem o Super Homem, sou eu em órbita, conhecem-me logo pelos óculos, a ir e a vir nestas andanças. Tive muito prazer em conhecê-los. Ponto!

[Nota final: Pedro Araújo Dantas faleceu em Londres, 2007]


N O T A S

27   in Oncle Howard est de retour, Jonathan Cosey, p. 29